Prólogo

A lua cheia iluminava o quarto de Herg Bu, senhor prefeito de Beirágua, cidade do sudeste da Ilha. De cima da sua torre ele observava através de uma janela a calmaria da cidade, todas as casas estavam escuras, provavelmente todas as pessoas da cidade repousavam depois de mais um dia de trabalho duro. Herg tinha trinta e nove e estava em seu segundo mandato como prefeito de Beirágua, fora escolhido pelo rei Thorn, dentre os quase dois mil habitantes da cidade. Era uma tarefa difícil, coletar impostos, julgar criminosos, limpar as ruas, proteger as pessoas de perigos de fora e de dentro da cidade, dentre outras burocracias.

 Herg respirou o ar da noite, apesar de ser inverno esta noite em particular era quente e agradável. Ele fechou a janela, sua mulher se mexeu na cama, os cabelos loiros se espalhavam pelo travesseiro, sua barriga estava redonda e enorme, grávida de oito meses Magha estava prestes parir seu filho. O prefeito se deitou ao lado dela e colocou a mão sobre seu ventre.

 - Você vai ser um menino forte - sussurrou Herg - vai governar essa cidade depois da minha morte.

 A criança se mexeu. Magha acordou e sentou-se na cama com uma expressão de terror.

 - Acho que chegou a hora - ela tinha um sotaque bárbaro - chame o parteiro. Dói muito!

 O prefeito saiu pela porta como um cavalo fugindo do fogo, poucos minutos depois voltou com um velho homem de barba branca e baldes de água quente. O velho homem levantou as cobertas de Magha sem cerimônia.

 - Vai nascer agora - a voz saia rouca e lenta da garganta do velho - arrume algo para ela morder.

 Herg obedeceu e assentou ao lado da mulher que ainda parecia assustada, agora ela tinha um pano rasgado para morder. O velho parecia lento, mas suas mãos não eram. Rapidamente estava tudo pronto para o parto.

- Agora morda e faça força minha querida - disse o homem para Magha - seu bebê está vindo.

 Pouco depois Magha já berrava alto, ninguém na casa do prefeito estava acordado, mas em breve a gritaria os tiraria do sono, Herg observava o corpo de sua mulher se contorcer ao fazer força e temia que ela não resistisse, mas depois do que pareceram ser horas finalmente Magha se relaxou e soltou um suspiro de alivio, logo viria o choro da criança, mas não veio. O velho enrolou o recém-nascido em uma manta e virou de costas, ele andou até um móvel no canto do quarto e lá repousou o embrulho. Devia ser a inquietação, todavia Herg parecia sentir mais calor.

 - É menino? - perguntou a mãe – porque não chora?

 - Senhor Klaus, o que aconteceu? - Herg se levantou e caminhou em direção a Klaus - ele está bem?

Quando olhou por cima do ombro do velho Herg viu uma cabecinha pequena e coberta com um liquido pastoso rosado, era careca e vivo, ele estava vivo!

- É um menino! - suspirou o pai - porque ele não chora?

Klaus permaneceu calado, e começou a limpar a criança com um pano úmido e um balde raso de água. Em poucos instantes ele estava limpo, uma bolinha rosada com braços e pernas, que permanecia sem chorar. Os olhos eram negros, com certeza mudariam para o tom verde escuro do pai, mas as pequenas esferas negras olhavam fixamente para Herg.

 O parteiro virou o bebê, e no pé da nuca uma marca negra chamou a atenção.

- O que é isso? - murmurou Klaus e tentou tirar a mancha com um pano, não saiu. Depois molhou o pano no balde com agua e esfregou a mancha, Klaus só conseguiu deixar o pescoço da criança vermelho, ainda assim ele não chorou.

 - Que os deuses tenham piedade de nós! - rezou ele.

 Herg viu a marca e muita coisa veio a sua mente repentinamente. Ele se lembrou dos magos, homens que nasciam com a marca do dragão e eram treinados nas artes magicas em algum lugar desconhecido. Ele sabia que quando estas crianças atingiam a idade certa algum mago apareceria e levaria a criança consigo, contudo as marcas dessas crianças eram vermelhas como fogo, a marca de seu filho era negra como a noite sem luar.

 - O que isso significa? - Herg estava inquieto.

 - Você conhece a profecia? - Klaus embalou novamente a criança.

- Que profecia?

- Quando a marca do Dragão se tornar trevas o mundo sucumbirá em sangue e o rei das profundezas se erguerá. O portador da marca nascerá sob a lua grande e destruirá a força da natureza.

 - Do que você está falando? - Herg se desesperou - entregue meu filho!

 - Ele não é seu filho, é o agente do mal - Klaus alcançou a faca que usou para cortar o cordão do bebê - ele não deve viver!

 Herg não conseguia controlar seus pensamentos, seu tão esperado filho seria mesmo a pessoa da profecia? Como o velho poderia ter coragem de tirar a vida de um recém-nascido?

 O amor pelo filho, seu primogênito, falou mais alto, em um movimento mais rápido do que o velho pode ver Herg segurou o punho que segurava a faca e empurrou o velho contra a parede, a mão direta segurava o pulso do velho contra o próprio peito e a esquerda mantinha o bebê a salvo entre eles. A diferença de força era enorme, e facilmente Herg dominou o velho que com muito esforço falou uma última frase:

 - Ele não é seu filho!

 O sangue subiu à cabeça de Herg que enfiou a faca no pescoço de Klaus de baixo pra cima, a faca deslizou suavemente pela garganta do ancião e Herg pôde sentir a pele se rasgando e a carne se abrindo enquanto Klaus tossia de dor. O corpo do velho estatelou-se contra a madeira do chão, morto!

 Herg largou a faca tremendo, o sangue escorria pela mão direita, a mão esquerda segurava o bebê ainda calado, ele apenas olhava para o rosto de Herg.

- Precisamos fugir Magha - o prefeito foi até sua mulher e tomou mais um susto - Magha!

 Herg sacudiu, bateu, chorou, mas a mulher estava morta, o parto que parecia ter sido tranquilo tirou a vida da sua esposa. Olhou para seu filho. Ele sentia um conflito de sentimentos e tinha a sensação de que seu coração iria rasgar seu peito, tamanha era a força com que batia. Lágrimas escorriam frias em suas bochechas.

 - Agora somos só nós dois – o prefeito pegou algumas coisas poucas, principalmente ouros dos cofres da cidade, antes que alguém aparecesse, e fugiu de Beirágua com seu filho.

Ano 1665. Era dos homens e elfos.

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